quarta-feira, 21 de março de 2012

Thor Batista ou Wanderson da Silva: quem foi o culpado? | Blog do Sakamoto

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2012/03/20/thor-batista-ou-wanderson-da-silva-quem-foi-o-culpado/

Muitos leitores me pediram um texto após
Thor, filho de Eike Batista, ter se envolvido
em um acidente que resultou na morte de
um ciclista no Rio de Janeiro, talvez pelo
fato deste blog cobrir o direito à cidade e a
uma mobilidade urbana mais digna. Há um
inquérito para entender as causas da morte
e, até lá, temos que ter cuidado com
afirmações categóricas. Mas uma pessoa
morreu e, novamente, em cima de uma
bicicleta. Por isso, pedi para Maria Paola
de Salvo , jornalista que foi editora de uma
grande revista especializada em
automóveis, um texto sobre o ocorrido.
Com isso, temos uma visão diferente sobre
o assunto, o que pode contribuir na busca
de formas de diminuir a violência no
trânsito. E colocamos elementos na mesa
para garantir que o responsável seja
apontado, independente de estar morto ou
ser rico.
Por quê? Bem, se pergunta isso, você não
mora em uma grande cidade brasileira.
Segue o texto:
Toda vez que uma celebridade ou
endinheirado a bordo de um carro potente
de milhares de reais atropela e mata um
pedestre ou um ciclista, o país inteiro se
lança num processo inquisitório em busca
dos culpados. Em geral, o condutor se
apressa a apontar o dedo para a vítima,
acusando-a de imprudente, como fez hoje
Eike Batista ao defender o filho Thor em
entrevista à colunista Mônica Bergamo, do
jornal Folha de S. Paulo,  e os familiares do
pedestre ou ciclista colocam a culpa na má
conduta do motorista. Perdida em opiniões
e preocupada em reproduzir declarações, a
opinião pública dificilmente aponta o dedo
para o lado que importa: o das evidências,
fatos e provas técnicas.
Todos têm direito ao benefício da dúvida e
são inocentes até que se prove o contrário.
Por isso, minha intenção aqui não é acusar
Thor nem o ciclista, mas levantar algumas
dúvidas em relação ao caso. Não sou perita
científica, mas, tendo produzido várias
matérias sobre acidentes de trânsito e
perícias de colisões para várias publicações
e como ex-repórter e ex-editora de uma
revista especializada em automóveis como
a Quatro Rodas, não consegui ficar calada
diante das declarações de Eike de que o
ciclista foi imprudente e o filho dele correu
risco. É possível, sim, que o ciclista
Wanderson Pereira da Silva tenha se
arriscado mais do que devia ao atravessar a
rodovia. Contudo, se isso realmente
aconteceu, é pouco provável que a colisão
tivesse sido frontal e tão violenta e ele
tivesse o corpo tão dilacerado, se Thor não
estivesse em alta velocidade.
É difícil acreditar em Thor apenas no papel
de vítima, como seu pai alega,
simplesmente porque algumas estatísticas,
evidências científicas e comportamentais
de trânsito nos mostram o contrário. Vejam
abaixo meus argumentos, que não refletem
a opinião da revista nem da editora para a
qual já trabalhei um dia:
1) Se o filho de Eike correu
risco, como afirma o
empresário, foi porque devia
estar em alta velocidade . Segundo
dados do National Pedestrian Crash
Report do NHTSA, o órgão de trânsito que
reúne estatísticas de acidentes nos Estados
Unidos, 0,3% dos motoristas
envolvidos em atropelamento
com vítima fatal morreram nos
últimos 10 anos nos Estados
Unidos . Em outras palavras, as chances
de prejuízos fatais são sempre maiores
para o pedestre e para o ciclista e não para
os condutores. Logo, pelas estatísticas, era
infinitamente baixo o risco de o filho de
Eike ter morrido ou se ferido no acidente –
a menos que estivesse em alta velocidade.
Por outro lado, as chances de morte de
Wanderson eram praticamente certas, de
100%, considerando que o carro estivesse
a 90 km/h, como Thor afirmou em
entrevista. A 70 km/h, o risco de morte de
um ciclista ou pedestre já é de 85%.
2) Há grandes chances de a
colisão ter sido frontal . Thor diz
que o ciclista saiu do acostamento e entrou
de repente na pista. Se assim fosse, a
maior probabilidade seria o ciclista ter sido
atingido de lado e, provavelmente, caído do
outro lado do carro. No entanto, o ciclista
parece ter sido colhido de frente e voado
por cima do capô, o que pode indicar uma
colisão frontal – não se sabe se na pista ou
se no acostamento, como alega a defesa da
vítima. Segundo especialistas, num
atropelamento em que a colisão é frontal,
o primeiro contato do corpo é com o início
do capô. Nas fotos da Mercedes de Thor, é
possível ver que a grade frontal foi de fato
danificada. Em colisões assim, carros de
passeio tendem mesmo a jogar o corpo
para cima do capô. Aqui, de novo, as fotos
do Mercedes depois do acidente mostram
evidências de que isso pode ter mesmo
acontecido: o para-brisa e o teto estão
completamente destruídos. Para uma
melhor compreensão de como acontecem
os choques frontais entre carro e corpo
humano, veja o infográfico aqui.
3) A Mercedes de Thor deveria
estar a pelo menos 80 km/h
quando atingiu o rapaz . Segundo
legistas, o risco de morte é de praticamente
de 100% quando o carro está a mais de 80
km/h. Ultrapassados os 80 km/h, a cada
quilômetro a mais, aumentam as chances
de fratura na coluna, rompimento de
artérias importantes e até
desmembramentos e amputações . No caso
em questão, testemunhas afirmam que o
tórax do ciclista se abriu ao meio, o
coração dele foi parar dentro da cabine do
motorista e seu corpo foi totalmente
dilacerado. O que leva a crer que Thor
poderia estar rodando bem acima dos 80
km/h.
4) Qual era a distância do corpo
do atropelado em relação ao
carro? A distância do corpo da vítima
ajuda a entender a dinâmica da colisão e dá
pistas sobre a velocidade do carro. A
mancha de sangue revela o local do
choque. A partir dela, sabe-se por quantos
metros o corpo foi arrastado. Se a distância
é grande, é porque o veículo devia estar
em alta velocidade, o que poderia ser
confirmado pelas marcas de frenagem.
Para isso, é extremamente importante
manter intacta a cena do acidente . No
entanto, ao que parece, não se tem
nenhuma dessas respostas até agora
simplesmente porque a cena da colisão foi
alterada e o veículo foi rápida e
estranhamente retirado do local.
5) Histórico de imprudência: o
motivo da maioria das multas da carteira já
“estourada” de Thor era excesso de
velocidade. A literatura de trânsito é farta
em estudos mostrando que motoristas
tendem a repetir o mesmo
comportamento imprudente quando não
são punidos. Diante disso, o que levaria um
garoto na faixa dos 20 anos (a mais
propensa a se envolver em atropelamentos
com morte, segundo o mesmo relatório do
NHTSA) e com histórico de excesso de
velocidade ter alterado seu
comportamento imprudente justamente
naquele dia, tendo nas mãos o volante de
um Mercedes-Benz SLR McLaren, que
chega a mais de 300 km/h?
Quando recebem punição, no entanto, os
motoristas tendem a mudar o jeito de agir
no futuro. Há dezenas de estudos na área.
O instituto australiano Centre for Accident
Research and Road Safety, de Queensland,
fez uma pesquisa em 2007 com 309
motoristas que dirigiam sem carteira de
motorista e foram punidos . Mediram-se as
intenções de dirigir sem habilitação de
novo no futuro. A conclusão é que o
comportamento imprudente não se
repetiria se o motorista percebesse a alta
probabilidade de ser preso e se as penas
fossem suficientemente severas.
Enquanto não tivermos as respostas para
essas dúvidas técnicas, será impossível
emitir um veredicto e eximir Thor de
qualquer culpa no acidente e acusar
Wanderson, o ciclista, como deseja Eike
Batista.
(Maria Paola de Salvo é jornalista, foi
repórter e editora da revista Quatro Rodas
e também repórter de Veja São Paulo, onde
costumava cobrir trânsito. Suas opiniões
não refletem a posição das revistas ou da
editora para a qual já trabalhou um dia.)

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